quinta-feira, 8 de março de 2012

A porção feminina de Deus

No dia Internacional da mulher trazemos um texto de Leonardo Boff, com uma belissima reflexão sobre a porção Deus que está em cada mulher.


 A porção feminina de Deus
Por Leonardo Boff
       O ser humano, masculino e feminino, é inteiro mas inacabado  e só encontra acabamento e  descansa plenamente se repousar em Deus. Isto significa: por mais que o homem e a mulher estejam, inarredavelmente, imbricados um no outro, se busquem, insaciavelmente, eles não encontram nessa relação a resposta de seu vazio abissal. Antes pelo contrário, quanto mais ela se aprofunda, mais radicalidade ela pede e mútua ultrapassagem solicita. 
       Ambos, pois, são chamados a  se auto-transcenderem, na direção daquilo que os pode realmente saciar, vale dizer, na direção de Deus. Ai repousam e se perdem para dentro do infindável Amor e da radical Ternura, sem deixarem de ser o que sempre foram e serão, homens e mulheres. É a pátria e o lar da infinita identidade e realização.
       O feminino encontrará o Feminino fontal e o masculino o Masculino eterno. Dar-se-á o que todos os mitos narram e todos os místicos testemunham: o esponsal definitivo, o festim sem hora de terminar e a fusão do amado e da amada no Amado e na Amada transformados.
      
1. Homem e mulher: Deus por participação
       Queremos ir mais longe do que perguntar o que significa o masculino e feminino em nosso caminho para Deus e o que significa o masculino e feminino no caminho de Deus para nós.  Ousamos radicalizar a questão:  que significa o masculino e feminino para Deus mesmo?
       Responder a tal questão equivale a estabelecer o quadro final (escatológico) do feminino e do masculino, não apartir deles mesmos mas a partir da última Realidade. No termo do infindável processo de evolução ou no termo de nosso percurso pessoal pela morte que poderão esperar o homem e a mulher? Que Deus preparou para nós? Qual é a nossa configuração terminal? Aqui não apenas os seres humanos somos implicados mas o próprio Deus.
       Para os cristãos, Deus é comunhão de divinas Pessoas, cada qual se comunicando absolutamente as outras. As Pessoas são diferentes para poderem se relacionar  umas com as outras, sairem de si mesmas em doação às demais  e assim se unirem e se uni-ficarem no amor.
       Essa mesma lógica essencial do Deus-comunhão-de-Pessoas se verifica no ato da criação. Deus-comunhão cria o diferente dele para poder seu auto-comunicar e se entregar totalmente a esse diferente. Esse é o sentido divino da criação e, no caso em tela, do ser humano enquanto masculino e feminino: criar um receptáculo que pudesse acolher Deus quando esse Deus decidisse sair totalmente de si e entrar no ser humano, homem e mulher.
Deus mesmo encontra uma realização que antes não tinha em si, uma realização no outro diferente dele. O masculino e feminino propiciam a Deus ser “mais” Deus, melhor, ser Deus de forma diferente. Por isso masculino e feminino são importantes para Deus. Permitem que Deus se faça também masculino e feminino (1).
       Para que pudesse acolher Deus, o próprio Deus dotou o ser humano, homem e mulher, com esta capacidade. Isso significa: deu-lhe um desejo ilimitado e uma sede insaciável pelo  Infinito, de tal forma que somente Deus mesmo, como Infinito, pudesse ser o objeto secreto do amor, do desejo e e da sede insaciável.
       Esse ser será um ser trágico porque, ontologicamente, infeliz e frustrado na medida em que não identifica, nestemundo, o objeto de sua plena realização. Percorrerá os céus e as terras, osabismos e as estrelas, os mistérios da vida e os anelos mais escondidos do coração para encontrar o porto onde possa em fim descansar.
       Dentro da presente ordem da criação não encontrará em lugar nenhum esse objeto ansiado e desejado. Quando, porém, Deus mesmo sai de si e se encarna num ser  humano e assim transfere seu ser Infinito para dentro do ser humano,então criou as condições para que este ser humano encontre o que ardentemente desde sempre desejava. O cálice preparado para receber o vinho, fica repleto desse Vinho Precioso. Encontrou o Santo Graal.  O ser humano, homem e mulher, atingiu, finalmente, sua plena hominização, fazendo-se um com Deus(2). Deixará de ser trágico para ser bem-aventurado.
       Tal fato nos faz entender o que a tradição cristã com razão sempre afirmou: “a completa hominização do ser humano supõe a hominização de Deus e a hominização de Deus implica a completa divinização do ser humano”(3).      Em outras palavras, o ser humano, homem e mulher, para tornar-se verdadeiramente ele mesmo, deve poder realizar as possibilidades depositadas dentro dele, especialmente essa de poder ser um com Deus, de superar a distância entre Deus e criatura e conhecer uma identifica-ção (ficar idêntico) com Deus.
       Quando ele chega a tal comunhão e uni-ficação (fica um) a ponto de  formar com Deus uma unidade sem confusão, sem divisão e sem mutação, então atingiu o ponto supremo de sua hominização. Quando isso irrompe, Deus se humaniza e o ser humano se diviniza. Com isso o ser humano é superado infinitamente e realiza a sua natureza de projeto infinito. O termo da antropogênese reside, pois, nateogênese,  no nascimento do ser humano em Deus e no nascimento de Deus no ser humano.
       Tal evento de ternura deve acontecer em todos os seres humanos, homens e mulheres. A fé cristã viu esse desígnio antecipado e, assim trazido à plena consciência, no homem  de Nazaré, Jesus. Dele se diz que era o Filho, a segunda Pessoa da Trindade e que nele se encarnou, assumindo nossarealidade humana integral (Jo 1,14).


2. Maria a espiritualização do Espírito Santo
Desde então se sabe que o masculino e o feminino, presentes em Jesus, penetraram no mistério mais íntimo de Deus. São parte do próprio Deus. Para sempre e por toda a eternidade. Pouco importa o que ocorrer com o fenômeno humano. Ele já virou Deus e é, por participação, a última Realidade. O masculino explicitamente porque Jesus era um homem. E ofeminino implicitamente porque estava presente em Jesus como parte de sua humanidade integral, sempre também feminina. 
       Mas convinha também que o feminino fosse divinizado explicitamente para haver um equilíbrio no desígnio de Deus(4). Efetivamente o texto bíblico de S. Lucas diz claramente que o Espírito, a Terceira Pessoa da Trindade, veio sobre Miriam de Nazaré e, qual beduino, armou sua tenda de forma permanente sobre ela (1,35).
       O evangelista Lucas usa  para a relação de Maria com o Espírito (que para o hebraico é feminino e assim revela uma conaturalidade com Miriam) a  figura da tenda (skené = episkiásei), figura essa usada também pelo evangelista São João para expressar a encarnação da Segunda Pessoa, o Filho, em Jesus (skené = eskénosen). Com isso quis sinalizar a espiritualização (“encarnação”) do Espírito em Mariam. Miriam é elevada à altura do Divino, é feita Deus, por participação. Consequentemente, diz o evangelista Lucas: “é por isso (dià óti) que o Santo que nascerá de ti será chamado Filho de Deus”(1,35). Só é Filho de Deus quem nasceu de alguém que é Deus (por participação). E esse alguém é a beatíssima mulher,  Maria de Nazaré.
Todas as mulheres, não só Maria,  são chamadas a essa divinização, pois todas elas são portadores desta possibilidade de acolher Deus (o Espírito) em si. Essa possilidade vai, um dia, se realizar plenamente. Caso contrário, um vazio eterno existiria em sua existência de mulher. Então cada mulher, a seu modo, será um com Deus. 
Eis seu quadro final e terminal, ser Deus por participação, Deus-Mulher, Deus-Esposa, Deus-Virgem, Deus-Mãe,Deus-Companheira. É a porção feminina de Deus.
Miriam de Nazaré, Maria, é uma amostra antecipada daquilo que será realidade para todas as mulheres. Ela representa a   realização individual desta revelação universal. Por ela ganhamos consciência de que o feminino foi divinizado juntamente com o masculino.  O feminino, divinizado explicitamente em Maria, carrega consigo  uma divinização implícita do masculino presente nela.
Essa divinização do feminino não é apenas apanágio dos cristãos. As grandes tradições espirituais e religiosasafirmam o mesmo evento benaventurado sob outros códigos culturais. Nas diferenças de linguagem se pretende testemunhar a mesma realidade sagrada. A energia que opera esta identificação do homem e da mulher com Deus é a  Kundalini para a India, o Yoga para os yogis, o Tao para Lao Tsé, a Shekinah da mística judia da Kabala, o Espírito Santopara a tradição judaico-cristã.       
Em todas elas se trata de alcançar uma experiência de não-dualidade, de mergulho no Mistério a ponto de identificar-se com ele, sem contudo, perder a própria identidade. Por isso dizemos: todos somos e seremos Deus por participação.
       Essa compreensão não penetrou ainda na consciência oficial das Igrejas cristãs, marcadas pelo paradigma patriarcal. Mas sempre esteve presente nos portadores principais da herança espiritual do cristianismo que é o povo cristão(5).
       Este adora Maria como Deus-Mãe. Na arte sacra, nas ladainhas e mas invocações, Maria vem representada com todos os atributos das antigas divindades femininas como o mostrou C. G. Jung. Maria é a única grande Deusa do Ocidente como o é Kuan Yin do Oriente e o foi Isis para as culturas antigas mediterrâneas(6) bem como é Yemanjá para a cultura popular  de tradição afro-brasileira.
       Assim chegamos a um perfeito equilíbrio humano-divino. O ser humano em sua unidade e diferença faz parte do mistério de Deus. Não poderemos mais falar de Deus sem falar do homem e da mulher. Não poderemos mais falar do homem e da mulher sem falar de Deus.
Escapa-nos o que significa, em sua  última radicalidade, essa imbricação divino-humana. São mistérios que remetem a outros mistérios, mistérios não como limite da razão mas como o ilimitado da razão, mistérios que não metem medoquais abismos aterradores mas que extasiam quais píncaros de montanhas. No fundo se trata de um único Mistério de comunhão e doação, de ternura e de amor no qual Deus e seres humanos estão indissoluvelmente envolvidos.
Sei que há feministas que não aceitam esse tipo de reflexão e alegam que não precisam da divinização paraserem plenamente mulheres. Eu apenas pondero: "estou lhe mostrando uma estrela; se você não a vê, não é um problema da estrela, mas um problema seu". A oferta de sentido continua sendo válida.
       Então podemos concluir: Deus não está mais longe de nós, longe de modo nenhum. Ele é a nossa mais profunda e próxima realidade, masculina e feminina. Somos Deus, enquanto homens e mulheres, por graciosa participação.

Notas se rodapé
1) Veja as excelentes reflexões do teólogo católico Karl Rahner, em Röper, A., Ist Gott ein Mann? Ein Gespräch mit Karl Rahner, Düsseldorf, Patmos 1979; van Lunen-Chenu, M.-T. e Gibellini, R., Donna e teologia, Brescia, Queriniana 1988; Hunt, M. e Gibellini, R., La sfida del femminismo alla teologia, Brescia, Queriana 1980; excelentes são os números completos da revista internacional Concilium dedicados à questão das  mulheres: o n. 202 de  1985, A mulher invisível na teologia e na Igreja; o n. 238 de 1991, Mulher-mulher e o n. 281 de 1999, A não ordenação da mulher e a política do poder.
2) Uma reflexão mais detalhada se encontra em meu livro  A Trindade, a Sociedade e a Libertação, Petrópolis, Vozes 1979.
3) Veja a articulação dessa idéia em Boff, L.,  O evangelho do Cristo cósmico, Rio de Janeiro, Record 2009; Id., Jesus Cristo libertador. Ensaio de cristologia crítica para o nosso tempo, Petrópolis, Vozes 1972, 272-275; veja também asboas reflexões de J.  Ratzinger,Introdução ao Cristianismo, S. Paulo, Herder l970, 189-190.
4) A argumentação teológica dessas afirmações se encontram em meu livro O rosto materno de Deus, Petrópolis, Vozes 1979, 92-117 e difundida em outras obras minhas; veja também a discussão desta idéia entre as feministas que, em sua grande maioria, não assumiram o quinhão de divindade pertencente à mulher, ficando por isso, dependentes da divinização do masculino em Jesus, impedindo uma libertação realmente total da mulher: Irigaray, L.,Equal to wohm? em Differences 1(1989) 69ss; Rae, E., Women, the Earth, the Divine, N. York, Orbis Books 1994, 81-93; Johnson, E., Aquela que é, Petrópolis, Vozes 1995. 294-302; Burns, J. E., God as Woman, Woman as God, N.York, Paramus 1973 e outras.
5) Veja as reflexões bem documentadas de Walker, B. G., Retoring the Goddess, N. York, Promethes Books 2000, 341-356; famosas são as reflexões de C.G. Jung ao mostrar que os católicos em seu inconsciente coletivo e contra sua Igreja oficial, têm Maria como divindade; para toda esta questão veja Unterste, P. Der Archetypus des Weiblichen in der chritlichen Kultur, em Die Quartenität bei C.G. Jung, Zurique 1972.
6) Veja Blofeld, J., A deusa da compaixão e do amor. O culto místico de Kuan Yin. S. Paulo, IBRASA 1995.

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