quarta-feira, 22 de outubro de 2014

Aspectos de minha caminhada

Por onde começar? Por certo, não do começo da caminhada que é muito caminho. Uma certeza carrego: venho seguindo um aceno de Jesus desde os mais verdes anos.

Fui coroinha na paróquia franciscana de Santo Antônio (Aracaju), Seminarista no Seminário Seráfico de Ipuarana dos anos 1947 a 1952; ordenado presbítero na Igreja de São Francisco (Salvador) a 20 de dezembro de 1958; educador em Ipuarana de 1961 a 1967. A partir de setembro de 1967 começou uma etapa decisiva em minha vida. Transferido para Aracaju, fui morar em casa modesta atrás da matriz de São Pio X do bairro Operário 18 do Forte entregue aos meus cuidados. Em breve foram morar comigo três ex-alunos de Ipuarana: Raimundo Lúcio, Zé Francisco e Tinã. Cada um seguiu, depois de algum tempo, seu próprio rumo: Lúcio foi ser padre diocesano, Francisco se formou em direito, Tinã abraçou a carreira política.

Em 1970 fui pregar missão no sertão sergipano, em Porto da Folha, onde já se encontrava frei Angelino. Foi ali que abracei consciente a vocação franciscana de pobreza e proximidade com os pobres, embora carregando minhas fraquezas e covardias. Angelino e eu decidimos permanecer em Porto da Folha mesmo à revelia do provincial Frei Martinho que nos remetia para o convento de Aracaju. Pedimos exclaustração por três anos e o bispo de Propriá nos acolheu e confiou a paróquia. Com frei Angelino vivi meu segundo e mais feliz noviciado, morando em casa de taipa de apenas três vãos e um banheiro. Logo, logo se associaram a nós dois confrades egressos da Ordem: Frei Roberto Eufrásio e Frei Enoque Salvador de Melo. Algum tempo depois chegou um jovem “beradeiro” do Rio São Francisco, filho de pescador, 
Anísio. Mais redes foram armadas na sala e no corredor. 

Organizamos a vida fraterna, partilhando em rodízio as tarefas domésticas, a oração, as celebrações com o povo. Nosso sonho era experimentar melhor o carisma de São Francisco, vivendo com os simples e humildes, revelando-lhes a face do Jesus dos Evangelhos, resgatando sua dignidade de filhos e filhas e imagens de Deus, buscando uni-los e organizá-los para a conquista de uma vida com melhor qualidade. Foram três anos de missão na vasta paróquia, cobrindo as distâncias com um jipe ou velejando de canoa no “Velho Chico”. Deixei na parede central da matriz, pintada uma amostra de nossa aposta na fé iluminando a vida: ao redor de um Cristo sertanejo, moreno, repartindo o pão, aves e flores que lembram a confiança no Pai. Mais ainda: toda a vida do povo do lugar: feira, vaqueiros, agricultores, bordadeiras, professora, o Rio São Francisco e a Rua da Baixinha com nossa morada e a matriz.
Veio o dia, contudo, em que novo aceno divino nos chamava para outra missão. Depois de uma quarentena de retiro junto aos monges de Taizé em Vitória do Espírito Santo, voltamos para assumir o novo desafio. O jipe da paróquia nos levou com nossos poucos pertences para a Diocese de Garanhuns. Foi-nos dado servir na pequena cidade de Paranatama. Lá ficamos Angelino, Anísio e eu; Frei Roberto e Enoque voltaram para Porto da Folha.

O povo pasmou aos se verem  servidos inesperadamente por dois padres e um irmão. As autoridades ficaram desconfiadas com esses forasteiros que não os consultaram, nem visitaram e traziam estranhas maneiras e ideias.
Para semear ali sementes de comunidade fazia-se necessário limpar o terreno cheio de intrigas, violência, prepotência impune do coronel reinante. Árdua campanha fizemos pela paz e reconciliação. Despossuídos do poder, sem carro, morando em ponta de rua, causamos forte impacto no povo que nos chamava de irmãos.

A Palavra de Deus ligada ao dia a dia do povo foi se espalhando pelos sítios afora, gerando novo conceito de Deus, confianças neles mesmos, acabando o medo dos coronéis, fazendo nascer núcleos de pessoas irmãs: eram as comunidades eclesiais de base que nasciam de um Evangelho inculturado. Breve começamos a ver os frutos dessa evangelização. Em várias dessas pequenas comunidades as pessoas iam formando bancos de sementes, hortas comunitárias, casas de farinha, capelas, salões comunitários, associação, visando assim uma melhor qualidade de vida. Quero dar um destaque à obra,  ao meu ver, mais importante das comunidades: a conquista da água boa pra uso doméstico. Canalizar água da fonte Lagoa Velha para a população mais carente a seis quilômetros distante foi luta gigantesca, ao ver de muitos, inviável para gente pobre. Pois vencendo a oposição de um prefeito adversário, de um presidente de sindicato “pelego”, do DNER e até de alguns companheiros descrentes, a obra foi realizada e a água chegou ao Riacho do Umbuzeiro, sendo inaugurada pelo Arcebispo de Olinda e Recife, Dom Hélder Câmara e pelo Bispo de Garanhuns, Dom Tiago. Essa proeza das águas desencadeou processos semelhantes em vários lugares. A linha libertadora da Fé e vida atuou em outras frentes. Com muito esforço e alguns fracassos conseguiu renovar o sindicato dos agricultores, insistiu perigosamente na política partidária até depor o coronel Manda-Chuva do lugar.

Nossa saída da casa grande (= convento) para a inserção entre os pobres (= senzala), sensibilizou padres e irmãs freiras a entrar na mesma caminhada. Depois de um retiro de três dias em um lugar ermo, abrigados em tendas, os participantes tomaram novos rumos com maior radicalidade. Frei Angelino e Anísio decidiram partir para um vilarejo à beira da BR que vai a Paulo Afonso. Frei João optou a viver sem dinheiro no povoado  Negras da paróquia de Itaíba. As irmãs deixaram o colégio para morar na periferia mais pobre de Garanhuns, conhecida por rua do Grilo. Pe. Luís Weel (diocesano e holandês) preferiu permanecer comigo na mesma área pastoral, mas indo morar no Sítio Cruz, mais próximo do agricultor. Em terreno doado, construímos uma casa e lá nos metemos com o piso ainda molhado. Ali começou nova etapa de minha vida que suponho ser a derradeira. Ali experimentamos a carência do essencial: energia elétrica não havia, nossa luz era de candeeiro a gás. Água não havia: íamos pegá-la em carro de boi emprestado em poço exposto a animais. Botamos roça de milho, feijão, macaxeira no hectare doado e fizemos plantio de variadas fruteiras. Carro não possuíamos, nem havia carro de linha no Sítio Cruz. Para ir à cidade, fazíamos a pé os dois e meio quilômetros  para pegar transporte na BR. E trazíamos de Garanhuns na força do braço a feira da semana. Mas estávamos felizes e o povo também. Este povo é muito acolhedor do Evangelho. E foi na força do Evangelho que junto ao povo conseguimos canalizar em dois mil metros uma preciosa água que abastece trinta e seis famílias por gravidade. No hectare de nosso uso cavamos três poços Amazonas. Com ajuda da CAVIS (Comissão de Ajuda às Vítimas da Seca) entidade diocesana, construímos um salão para os muitos usos da comunidade, desde a reza até o lazer. Com herança recebida da família, Pe. Luís Weel puxou energia elétrica para nossa casa e para os vizinhos pobres. A Província Franciscana achou por bem enviar para nossa casa os frades egressos do Noviciado para viverem uma experiência pastoral. 

Alguns anos depois chegaram alguns definidores para negociar a vinda do Noviciado ao Sítio Cruz. Construímos alguns quartos para abrigar os noviços. O salão multiuso foi reformado para se prestar tão somente à oração; o lazer foi transferido para outro lugar no sítio. Era preciso escolher um padroeiro para a nova capela. O processo foi democrático por votação. Apesar da força dos numerosos frades que torciam por São Francisco, ganhou Nossa Senhora sob um título até então desconhecido Guadalupe.

Nove anos a casa Nossa Senhora de Guadalupe abrigou o Noviciado Franciscano numa interação valiosa entre noviços e povo de Deus. As pastorais ganharam reforço, a liturgia maior brilho e participação. O novenário da padroeira revelou a imensa simpatia que goza a Virgem morena por parte das comunidades em torno; são dez dias de capela transbordante de gente e de comoventes testemunhos de graças alcançadas.

Um dia, que pena, o noviciado partiu para outras paragens. Fiquei sozinho. Então me atirei com maior vigor à minha velha paixão pelas Comunidades Eclesiais de Base. Com um grupo de dez companheiros (as), a Comissão Diocesana de CEBs, pleiteamos transformar  a casa Nossa Senhora de Guadalupe em um Centro de encontros de formação. Para isso fizemos projeto que através da Província foi encaminhado a entidade europeia. A resposta positiva permitiu a construção de dois dormitórios com capacidade de vinte camas cada um, cozinha, sala de jantar, sala de reunião, palco ao ar livre para a Festa da Colheita.

Esse conjunto de terra e imóveis pertence por doação à Província Franciscana de Santo Antônio e é cedido  para uso das Comunidade Eclesiais de Base. Essas comunidades fazem uso  gratuito da casa franciscana financiado pela Festa da Colheita. Outros grupos que pedem o uso da casa para retiros, capacitações etc. pagam taxas módicas que servem à manutenção do centro. A Festa da Colheita já na 17ª edição, acontece no mês de outubro para agradecer a Deus pela safra obtida e oferecer uma parte da colheita para manutenção da pastoral das CEBs. As sementes e demais ofertas são vendidas e posto o dinheiro em conta conjunta, tem-se um fundo para conservação do Centro pastoral, dos carros, visitas missionárias, despesas com encontros no Centro, gratificação de servidores. O Recanto Franciscano Nossa Senhora de Guadalupe procura atender os usuários nas três dimensões batismais: Sacerdotal, Profética e Política. Na dimensão Sacerdotal, assume os sacramentos da iniciação cristã, a catequese do Batismo, da Eucaristia, da Crisma, a Liturgia. Recentemente começou a haver o Terço dos Homens que vem reunindo para rezar e refletir o Evangelho homens que jamais cruzaram a porta de nossa capela. Na dimensão profética praticamos a leitura da Bíblia iluminando o dia a dia da vida em quase todos os meses do ano. Nessa linha acompanhamos cada gesto profético de anúncio e de denúncia que se faz necessário. Assim participamos da coleta de assinaturas que se tornou Lei da Ficha Limpa; no momento recolhemos assinaturas a favor da Reforma Política e de Eleições Limpas. Entramos de cheio na campanha “um milhão de cisternas” para aproveitar as águas das chuvas do telhado. A bem da verdade, já me antecipei a esse projeto, construindo no Recanto Franciscano cinco cisternas que guardam aproximadamente cento e trinta e cinco mil litros.

O que está faltando nessa casa franciscana? Faltam confrades que formem a fraternidade pois é assim constituída a instituição Franciscana. Foi decisão do último capítulo que os jovens frades estudantes terão um ano de experiência pastoral após o curso de Filosofia e serão distribuídos por algumas casas priorizadas para tal. 

O Sítio Cruz situa-se entre estas áreas. Estou no aguardo que isso se cumpra.

Prezado João Marques, eis em síntese os caminhos que percorri por bondade divina até esse momento. Dou graças a Deus por tudo que me sucedeu e espero com sua graça chegar ao bom fim  que  meu nome augura.

Abraça-o o irmão Juvenal Bomfim

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